Anais: Outros

Construção da Estrada União e Indústria: condicionantes hidrogeomorfológicos

AUTORES
Bartholomeu, M.C. (PUC-RIO) ; Waldherr, F.R. (PUC-RIO)

RESUMO
Este trabalho analisa o papel dos fatores hidrogeomorfológicos da paisagem no condicionamento do traçado e influência sobre a construção da Estrada União e Indústria, entre Petrópolis (RJ) e Juiz de Fora (MG). Este empreendimento se deu em meados do século XIX e o rasgo da estrada teve de enfrentar diversos obstáculos, como as escarpas dos afloramentos graníticos da Serra do Taquaril, e lançar pontes sobre os diversos rios e córregos que corta.

PALAVRAS CHAVES
Estrada União e Indústria; Rio Piabanha; Rio Paraibuna

ABSTRACT
This piece of work analyses the role of landscape hydrogeomorphological factors for the line conditioning and for the influence over the building of União e Indústria Road, from Petrópolis (RJ, Brazil) to Juiz de Fora (MG, Brazil). This enterprise occurred in the middles of 19th. century and the construction had to face many obstacles, such as the scarps of Taquaril Ridge's granitic outcrops, and to build bridges over the several rivers and water streams it crosses.

KEYWORDS
União e Indústria Road; Piabanha River; Paraibuna River

INTRODUÇÃO
Este trabalho analisa o papel dos fatores hidrogeomorfológicos da paisagem no condicionamento do traçado e influência sobre a construção da Estrada União e Indústria, entre Petrópolis (RJ) e Juiz de Fora (MG). Tal construção foi iniciada em 1856 e inaugurada em 1861. Seu principal fim foi a facilitação do transporte do café, cujo tráfego era realizado em diligências, configurando a União e Indústria como uma estrada de rodagem. O empreendimento, primeira rodovia pavimentada da América Latina, é reconhecido como a maior obra de engenharia do continente à época, pois o rasgo da estrada teve de enfrentar diversos obstáculos, como as escarpas dos afloramentos graníticos da Serra do Taquaril, e lançar pontes sobre os diversos rios e córregos que corta. Na região deste recorte geográfico encontram-se os maciços das Serras do Mar e da Mantiqueira, onde a paisagem foi controlada por um sistema de falhamento em horst e graben em que nas depressões foram alojadas várias sequências sedimentares cenozoicas em bacias. Ela faz parte da Faixa Móvel Ribeira, em compartimentos orientados NE-SW. O evento tectônico foi formado por uma compressão dúctil, associada à orogenia brasiliana no Neoproterozoico [1]. Outros dois eventos de estilo tensional estão associados à abertura do proto-Oceano Atlântico durante o Jurássico e ao rifteamento continental neocretácico e paleogênico, caracterizado por um sistema de falhas normais, com planos orientados ENE e mergulho para SE, originando soerguimentos e subsidências diferenciais [2]. O deslizamento gravitacional ao longo das linhas de fraqueza pré-cambrianas foi responsável pelo basculamento de blocos crustais, configurando cristas de altitudes apreciáveis nas Serras da Mantiqueira e do Mar e no maciço da Carioca e depressões intermediárias: os denominados semi-grabens do Paraíba do Sul e da Baixada Fluminense [3]. Desse modo, tais serras se apresentam como escarpas de linhas de falhas com desníveis consideráveis.

MATERIAL E MÉTODOS
Pelo fato de a construção da Estrada União e Indústria ter ocorrido em meados do século passado, optou-se por buscar fontes que fossem contemporâneas a ela ou que tratassem do percurso com riqueza de detalhes. Desta maneira, chegou-se a duas obras de referência. A primeira é bastante conhecida no meio da ciência geomorfológica: “O homem e a serra”, de Alberto Ribeiro Lamego [4] e retrata tanto a Geografia Física como a Geografia Humana da região. A segunda obra, “Álbum da Estrada União e Indústria”, de Pedro Karp Vasquez [5], remonta e comenta as viagens do fotógrafo da família imperial Revert-Henry Klumb pela rodovia, cujas imagens e relatos foram publicados em 1872 no primeiro guia de viagens brasileiro: “Doze horas em diligencia: guia do viajante de Petropolis a Juiz de Fóra”. Analisou-se, pois, as ricas fotografias e informações, associando-as a fontes complementares, para discorrer sobre o peso da geomorfologia na construção e primeiros anos de manutenção da estrada. Atualmente, boa parte do trajeto original foi alterada ou suprimida pela rodovia federal BR-040 que liga a cidade do Rio de Janeiro (RJ) a Brasília (DF), passando por Petrópolis e Juiz de Fora. Ainda assim, constantes observações de campo efetuadas na região permitem evidenciar alguns importantes aspectos geomorfológicos e hidrológicos que atuaram à época (e ainda atuam).

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em meados do século XIX, a dinamização do transporte cafeeiro do médio vale do rio Paraíba do Sul ao porto do Rio de Janeiro se colocava como um desafio necessário para o crescimento da exportação agrícola brasileira. No entanto, a técnica rodoviária da época ainda era muito pouco desenvolvida, de modo que o rasgo da rodovia (fig. 1) precisou acompanhar o curso dos rios Piabanha e Paraibuna, estabelecendo a construção a suas margens ou, como de costume, à meia vertente. Para Ruellan, “a Serra dos Órgãos é um bloco falhado, modelado pela erosão fluvial e basculhado para o norte” [6, p. 5], propondo a existência de possíveis “falhas transversais, orientadas sul-norte, delimitando blocos e explicando a depressão e a dissimetria do relêvo do vale do rio Piabanha e, sobretudo, seu brusco abaixamento a oeste da serra da Estrêla” [6, p. 7]. Há, porém, de se corroborar Lamego, ao se admitir que a hipótese de fraturas paralelas, e não falhas, correspondendo “à orientação dos rios Ubá, Piabanha, Paquequer Pequeno e Paquequer, em grande extensão dos respectivos cursos, e, provavelmente, na margem esquerda do Paraíba ao trecho final do Paraibuna e ao seu afluente o rio Cágado” [4, p. 37] é mais razoável. A Lamego parece que a mesma fratura sobre a qual o leito do baixo Piabanha corre teria atravessado o Paraíba do Sul próximo à cidade de Três Rios, cortando a Zona da Mata mineira e condicionando os cursos do Cágado e da porção final do Paraibuna. Entretanto, a confluência tripla dos rios Piabanha, Paraíba do Sul e Preto (do qual o Paraibuna é afluente ligeiramente a oeste), bem como o cotovelo no baixo curso do rio Preto passando de uma orientação paralela à do Paraíba para uma orientação N-S, parecem indicar um falhamento [7] que deslocou a própria fratura Piabanha-Paraibuna, em sua parte setentrional, para oeste. Desse modo, a Estrada União e Indústria se aproveitou das capturas de drenagem em favor do Paraíba do Sul para penetrar a Serra da Mantiqueira, ainda que esta fosse de transposição mais fácil em virtude do relevo já bem mais dissecado e mamelonar. Na descida do Piabanha, Klumb observa que “(…) aqui e acolá (o Piabanha) transforma-se em torrente”, notando “cascatas sucessivas” [8]. Ruellan explica isso ao afirmar que “quando os rios se aprofundaram no nível das colinas, nas quais a espessura da camada de decomposição é geralmente grande, encontraram bancos de rochas duras que dificilmente transpuseram e onde persistem rápidos e mesmo cascatas. Os rios transversais, isto é, orientados sensivelmente sul-norte, modelaram, pois, uma série de vales largos com fundo chato, inundados por ocasião das cheias anuais, seguidos por gargantas que testemunham uma trabalhosa adaptação apalachiana.” [6, p. 10-11] Klumb [8] conta um episódio em que teve de ser reformada a Ponte do Bonsucesso por ocasião de inundação ocorrida em janeiro de 1866, reconhecidamente um período do ano de fortes precipitações, numa área em que o fator orográfico as torna ainda mais intensas. O grande obstáculo na construção da rodovia, porém, foi, de fato, a Serra do Taquaril (fig. 2), onde “imensas paredes de granito elevam-se verticalmente de cada lado da estrada (…). Esta parte da estrada é quase toda lavrada na rocha, pendora o precipício, no fundo do qual correm roncando as ondas iradas do Piabanha. Neste lugar do Taquaril selvagem e majestoso existe o único abaixamento desta serra que tínhamos à nossa esquerda desde Petrópolis, e portanto o único desfiladeiro possível para passar do vale superior do Piabanha ao da Posse.” Neste local, onde foram exigidos “vários altos cortes na rocha (o maior dos quais com 425m), diversos aterros e construção de muros de arrimo com até 18m de altura” [5, p. 42], Lamego admite que a fratura do Piabanha pode passar a uma verdadeira falha.

Fig. 1: Percurso da Estrada União e Indústria

Mapa altimétrico de localização da Estrada União e Indústria e os principais condicionantes hidrogeomorfológicos de sua construção.

Fig. 2: Serra do Taquaril

Afloramentos graníticos às margens da Estrada União e Indústria, nas proximidades de Petrópolis (RJ). Fotografia de Revert-Henry Klumb (186?).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção da Estrada União e Indústria se aproveitou de uma fratura transversal (N-S), dissecada pelos vales do rio Piabanha e do rio Paraibuna, à orientação dos compartimentos das Serras do Mar e da Mantiqueira (NE-SW), uma vez que a técnica pouco desenvolvida dificultava sobremaneira o estabelecimento da rodovia em terrenos muito acidentados. Apesar disso, o rasgo da estrada teve de vencer as escarpas íngremes da Serra do Taquaril e os diversos canais entrecortantes, o que só foi possível com a contratação de profissionais qualificados, em trabalhos que “testemunham o poder, a vontade e a perseverança humana” [8], configurando a União e Indústria como a mais avançada das rodovias da América Latina à época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
[1]- HEILBRON, Monica C. P. L.; VALLADARES, Claudia S.; VALERIANO, Claudio de M.; MACHADO, Nuno. A orogênese brasiliana no segmento central da Faixa Ribeira. Revista Brasileira de Geociências, São Paulo, v. 25 (4), dez. 1995. p. 249-266.

[2]- BIGARELLA, João José; PASSOS, Everton; HERRMANN, Maria Lucia de P.; SANTOS, Gilberto F. dos; MENDONÇA, Magaly; SALAMUNI, Eduardo; SUGUIO, Kenitiro. Estrutura e origem das paisagens tropicais e subtropicais: processos erosivos, vertentes, movimentos de massa, atividade endógena, superfícies de erosão, compartimentação do relevo, depósitos correlativos e ambientes fluviais. v. 3. Florianópolis: UFSC, 2003.

[3]- ASMUS e FERRARI, 1978, apud BIGARELLA, João José; PASSOS, Everton; HERRMANN, Maria Lucia de P.; SANTOS, Gilberto F. dos; MENDONÇA, Magaly; SALAMUNI, Eduardo; SUGUIO, Kenitiro. Estrutura e origem das paisagens tropicais e subtropicais: processos erosivos, vertentes, movimentos de massa, atividade endógena, superfícies de erosão, compartimentação do relevo, depósitos correlativos e ambientes fluviais. v. 3. Florianópolis: UFSC, 2003.

[4]- LAMEGO, Alberto Ribeiro. O Homem e a serra. Ed. fac-sim. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. (Setores da evolução fluminense, v. 4).

[5]- VASQUEZ, Pedro K. Álbum da Estrada União e Indústria. 2. ed. Rio de Janeiro: Quadratim G, 1998.

[6]- RUELLAN, Francis. A evolução geomorfológica da Baía de Guanabara e das regiões vizinhas. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, ano 6, n. 4, p. 3-66, out.-dez. 1944.

[7]- DE MARTONNE, Emmanuel. Problemas morfológicos do Brasil Tropical Atlântico. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, ano 5, n. 4, p. 3-30, out.-dez. 1943.

[8]- KLUMB, 1872, apud VASQUEZ, Pedro K. Álbum da Estrada União e Indústria. 2. ed. Rio de Janeiro: Quadratim G, 1998.