Anais: Geomorfologia fluvial

A DELIMITAÇÃO DE PERÍMETROS DE INUNDAÇÃO NO SETOR TERMINAL DO RIO LEÇA (PORTUGAL): METODOLOGIAS E IMPLICAÇÕES NO ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO

AUTORES
Gomes, A. (CEGOT FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO) ; Marafuz, I. (FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO) ; Gonçalves, P. (FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO)

RESUMO
As cheias são eventos naturais recorrentes com implicações significativas em termos humanos e económicos. Assim, é crucial definir perímetros de inundação e identificar os elementos expostos, apoiando a tomada de decisões corretas ao nível do ordenamento do território. A modelação de perímetros no rio Leça efetuou-se com base no MDT, ficheiros de geometria e valores de caudais máximos de cheia. Validaram-se os resultados com notícias e fotografias de jornais e ainda inquéritos à população.

PALAVRAS CHAVES
Cheias; Perímetros de inundação; Hec-Ras

ABSTRACT
Floods are recurrent natural events which have significant human and economic implications. It is, for this reason, crucial that flood perimeters are defined, and that exposed elements are identified so that correct planning decisions can be made. Modelling of these perimeters, in Leça River, was made using the DTM, geometry files and maximum flood flows values. Lastly, validations of the results was based on news and photos obtained in newspapers and by inquiring population.

KEYWORDS
Floods; Flooded areas; Hec-Ras

INTRODUÇÃO
As cheias são eventos naturais com implicações significativas em termos humanos e económicos (Gunn, 2008; Jonkman & Vrijling, 2008). Estes episódios,recorrentes no rio Leça (Portugal) são particularmente acentuados no setor estudado (Fig.1A ) - a freguesia de Santa Cruz, no concelho de Matosinhos (Portugal). Os registos de ocorrências de cheias no setor,evidenciam os danos que estes episódios assumem na área e a pertinência da modelação da superfície alagada. Para isso, utilizaram-se os softwares ArcGis, Hec-Ras e Hec-GeoRas de modo a delimitar-se os perímetros de inundação, obter-se a altura da coluna de água e área de alagamento para diferentes tempos de retorno - 10, 50 e 100 anos. A altitude na bacia varia entre os 0 e os 532 m, o que perfaz um valor médio de 145 m. O relevo onde se insere a bacia compreende três unidades geomorfológicas principais (Soares et al., s/d): a plataforma litoral, abrangendo uma faixa aplanada que se estende desde a linha de costa até às primeiras elevações no interior (Araújo, 1991); o vale do rio Leça que corresponde a uma área complexa caracterizada por setores relativamente encaixados, sectores baixos aplanados e várias depressões ao longo do seu percurso; e o designado “relevo intermédio” a montante, que engloba essencialmente um conjunto de colinas como a Serra da Agrela (532 m) e o Monte Córdova. A jusante, os declives são relativamente suaves enquanto a montante apresentam inclinações que em alguns setores ultrapassam os 35º (Soares et al., s/d). Segundo a classificação climática universal de Köppen-Geiger (Kottek et al.2006), a bacia encontra-se numa zona temperada, cuja estação estival é seca e suave e o Inverno chuvoso, ou seja, um clima do tipo Csb.Já a ocupação do solo na bacia do Leça é muito diversa, sendo dominada pela artificialização (34,5%) do sector ocidental e pela vasta área florestal (39,9%) do sector oriental, apresentando reduzidas áreas urbanizadas e espaços agrícolas (25,5%) (COS 2007).

MATERIAL E MÉTODOS
Os procedimentos adotados na delimitação dos perímetros de inundação, considerando tempos de retorno (T) de 10, 50 e 100 anos, estão esquematizados na fig.1B. A bacia hidrográfica do Rio Leça foi delimitada através da extensão Hec-GeoHMS do software ArcGis (HEC, 2010). A partir de cartografia altimétrica à escala 1:1000, criou-se o modelo digital de terreno local com resolução espacial de um metro. Para além dos dados altimétricos foram incluídas breaklines (muros e outros obstáculos à livre circulação da água), criando assim um MDT mais detalhado (Santos, 2009). Foi também inserida a informação geométrica da bacia, obtida com a extensão Hec-GeoRas. Posteriormente, estes dados foram importados e processados no software Hec-Ras, juntamente com os valores dos caudais máximos de cheia, calculados com base na fórmula de Loureiro (Loureiro, 1984).De entre as fórmulas empíricas, cinemáticas e estatísticas existentes, optou-se por utilizar o método estatístico de Loureiro, visto que é frequentemente aplicado nos estudos de cheias realizados para Portugal (Ramos, 1994), embora, este método não tenha em linha de conta as características do movimento da água, como é o caso do tempo de concentração. Para definir estes parâmetros, o autor realizou diversos estudos para o Norte e Sul do país, tendo delimitado zonas em que correlacionou os caudais de ponta cheia determinados pela distribuição de Gumbel com a área da bacia (Lencastre & Franco, 1984). Assim, a bacia hidrográfica do Rio Leça insere-se na zona 3, a que corresponde um valor de Z de 0,51 e um valor de C de 49,5 (T 100anos), o que perfaz um caudal de ponta de cheia de 718,1 m3/s. Por fim, os ficheiros criados no Hec-Ras foram exportados para o ArcGis, delimitando-se os perímetros de inundação através da extensão Hec-GeoRas. A modelação efetuada permitiu, então, obter a altura e extensão da coluna de água, bem como a velocidade da água, considerando os diferentes períodos de retorno em análise.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
A modelação efetuada permitiu delimitar os perímetros de inundação para os diferentes períodos de retorno pretendidos. O conhecimento das áreas potencialmente afetadas bem como a largura máxima e mínima que cada um poderá atingir no vale, associados às superfícies inundadas contribuem para o aconselhamento dos decisores no ordenamento do território. Numa cheia frequente (T10 anos) a extensão afetada é de aproximadamente 698504 m2, em 50 anos, de 798406 m2 e, num episódio de cariz excecional de 843844 m2. Como se pode verificar pela figura 2A, a extensão que área alagada atinge não é regular ao longo de todo o setor estudado. A planície aluvial do rio Leça é ampla e aplanada, promovendo um maior espraiamento da água em setores específicos, como se pode constatar pelos valores apresentados na figura 2D para os perfis AA’, BB’ e CC’. Nos perfis AA’ e BB’, as alturas máximas da água, numa cheia centenária, estão compreendidas entre os 10 e os 11.4 m, respetivamente. No entanto, pela morfologia do terreno, é na secção BB’ que a água se espraia mais no vale (cerca do dobro do que na secção AA’). No perfil CC’ a planície é bem mais larga, sobretudo na margem direita, inundando uma área mais extensa. Observando a figura 2D, verifica-se que numa cheia de 100 anos, a água consegue atingir quase 14 m de altura e estender-se por uma largura aproximada de 577 m. Já no sector terminal do segmento modelado, o vale é mais encaixado e a altura da coluna de água é ainda maior, não se espraiando como nas restantes secções (fig. 2A). Esta elevação majorada deve-se ao forte encaixe que o vale assume nesse setor, estrangulando a secção por onde o fluxo se canaliza. A existência de um estrangulamento morfológico com uma largura de cerca de 55 m e uma distância entre as margens de 10 m, justifica a subida da água a montante, funcionando como uma barreira que condiciona a passagem da água para jusante. Acresce a este facto, a presença de uma antiga ponte neste local, elemento que contribui para o estrangulamento da secção disponível, dificultando o fluxo de água para jusante. Assim, verificamos que numa cheia centenária na secção DD’, a extensão da água é menor (cerca de 102 m) e a coluna de água atinge um máximo de 16,25 m. Desta forma, os perfis transversais traçados refletem a morfologia de cada setor, que, por sua vez, interfere na altura da coluna de água, velocidade do fluxo e extensão da área atingida pela inundação. Quanto aos danos materiais, pode-se referir que numa cheia de 100 anos existe a possibilidade de 79 edifícios (não considerando a tipologia) serem afetados.Para um período de retorno de 50 anos, esse número é reduzido para 72 e em 10 anos, para 62 edifícios. A validação dos resultados foi realizada com trabalho de campo através do reconhecimento das condições geomorfológicas locais, ou seja, da topografia e das características geométricas da planície aluvial. A validação foi igualmente importante para se melhorar o modelo, uma vez que alguns elementos presentes no território não constavam na cartografia utilizada, acrescentando-se os mesmos ao modelo inicial. Refere-se, por exemplo, a presença de obstáculos à livre circulação da água, como os muros construídos na planície de inundação. Neste sentido, realizaram-se algumas medições no campo e refinou- se o modelo através da incorporação destes novos dados. Seria também interessante incorporar no MDT algumas medições referentes à altura dos edifícios de modo a obter a cota que a água atinge dentro dos mesmos. Desta forma, conseguir-se-ia avaliar de forma mais correta os potenciais danos nas infraestruturas. Por outro lado, efetuou-se uma pesquisa em jornais locais com o intuito de recolher informações sobre a ocorrência de cheias na área de estudo, verificar a altura atingida pelas águas, em locais/edifícios ou pontes bem conhecidos, para eventos de inundação registados (fig. 2B) e ainda se realizaram alguns inquéritos à população local.

Figura 1

A) Localização e hipsometria da bacia hidrográfica do rio Leça; B) Esquema metodológico.

Figura 2

A) Perímetro e altura da água para T100 anos; B)Cheia em 1995 (T10 anos); C) Situação de escoamento médio (2012); D) Características dos perfis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ensaio efetuado demonstra que a utilização de cartografia pormenorizada na construção do MDT de base é crucial para assegurar a qualidade dos resultados (Santos et al., 2011; Calçada et al. 2004). A modelação realizada possibilitou a obtenção de resultados realistas que evidenciam a subida do nível da água e da forma como esta se espraia pelo vale do rio Leça. Os perímetros de são essenciais para que se tomem decisões corretas ao nível do ordenamento do território em termos de restrições à edificação nas planícies aluviais. No caso dos edifícios que se encontram dentro dos perímetros de inundação delimitados, deverá proceder-se ao reforço de alguns diques de proteção e também reforçar ações de limpeza e manutenção do curso de água, de modo a minorar os constrangimentos à livre circulação da água. A aplicação de medidas preventivas permitirá contrariar os efeitos negativos associados a episódios de cheia, designadamente na segurança da população e preservação dos seus bens.

AGRADECIMENTOS
Os nossos agradecimentos à Câmara Municipal de Matosinhos que facultou o acesso a diversa cartografia de base relativa ao município, nomeadamente, a planimetria em formato vetorial à escala 1.1000. À Biblioteca Municipal Florbela Espanca que permitiu a consulta aos arquivos históricos dos jornais locais, assim como, de fotografias e monografias do setor em estudo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
plataforma litoral da região do Porto. Dissertação de Doutoramento. Faculdade de Letras. Porto. 534 p.
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