ÁREAS ALAGADAS SOBRE INTERFLÚVIOS DA BACIA DO MÉDIO/BAIXO RIO NEGRO - AM: CONSIDERAÇÕES SOBRE SUA GÊNESE

Autores

Taitson Bueno, G. (PUC-MINAS) ; Nascimento, N.R. (UNESP-RIO CLARO) ; Felicio Pereira, L. (CPRM-GOIÂNIA) ; Batista de Souza, J. (PUC-MINAS) ; Silva Guimaraes, F. (PUC-MINAS)

Resumo

Áreas alagadas ocorrem nos interflúvios da Bacia do Rio Negro. Para discutir sua gênese, estudou-se sua distribuição espacial e baseou-se em estudos de dois sítios. Duas vias genéticas são propostas: aquelas sobre unidades geológicas pré-cenozoicas se desenvolveram por perdas geoquímicas, associadas à formação de depressões com Espodossolos. Aquelas situadas sobre a Formação Içá são relictas do ambiente flúvio-lacustre de sedimentação dessa Formação, ainda preservadas da dissecação fluvial.

Palavras chaves

áreas alagadas; Bacia do Rio Negro; Amazônia

Introdução

Áreas alagadas são comuns sobre os interflúvios tabulares dos principais afluentes do Rio Negro, Estado do Amazonas. Apresentam formações vegetais de baixo porte, do tipo campinarana (VELOSO et al., 1991), que contrastam com a floresta de terra firme. Costa et al., (1978) propõem que as áreas alagadas arenosas seriam paleoplayas, associadas a evento de pediplanação, enquanto, para Ab’Saber (1982), as “areias brancas” encharcadas e cobertas por campinas sobre interflúvios da Amazônia teriam origem em lentes ou membros arenosos de formações geológicas sedimentares. Lucas et al., (1987) constataram que materiais arenosos sobre platôs na Amazônia guianense eram Espodossolos originários da transformação de Latossolos devido a mudanças do escoamento interno do solo e às condições de hidromorfia. Situações análogas foram descritas na bacia do Alto Rio Negro-AM por Dubroeucq e Volkoff (1998) e Mafra et al., (2002), e no baixo Rio Negro por Nascimento et al., (2004). Uma das maiores áreas alagadas da Amazônia brasileira ocorre no Médio Rio Demini, afluente do Rio Negro pela margem esquerda. Segundo Rossetti et al., (2012) a área teria sofrido subsidência, criando espaços de acomodação de sedimentos arenosos, depositados em estruturas de megaleques. Os sedimentos pouco consolidados da Formação Içá são o substrato dessa área, assim como de parte dos relevos da margem direita do Rio Negro (CPRM, 2006). Campbell et al., (2006), em estudos na Amazônia peruana, afirmam que os relevos planos sobre essa Formação constituiriam uma superfície de acumulação, atualmente em processo de dissecação, e não um peneplano ou um pediplano. Propõe-se, aqui, que as áreas alagadas interfluviais sobre os baixos platôs da Amazônia central resultam de duas vias genéticas principais, determinadas pela história geológica e geomorfológica recente da região. O objetivo deste trabalho é discutir a gênese das áreas alagadas interfluviais dos baixos platôs da Amazônia central.

Material e métodos

Os estudos foram conduzidos em duas escalas. Na regional estudou-se a distribuição espacial das zonas alagadas e suas relações com as demais unidades geomorfológicas e com a rede de drenagem: as relações estruturais são concordantes, quando as estruturas não se interseccionam, podendo ser paralelas ou embutidas umas nas outras, ou discordantes, quando se interseccionam (FRITSCH et al., 1992). Mapas de geologia, geomorfologia e solos (CPRM, 2006; IBGE, 2010a; b; COSTA et al., 1978; YAMAZAKI et al., 1978) e imagens de satélite Landsat foram usados para elaborar um mapa com unidades geológicas e uma unidade morfo-pedológica para as áreas alagadas interfluviais. A escala local refere-se a dois sítios de estudos: 1) No Sítio do Jaú, situado no Baixo Rio Negro, sobre a Formação Prosperança (CPRM, 2006), uma área interfluvial sazonalmente alagada e deprimida situa-se a 4 km da margem do Rio Jaú, da qual é separada por solos de melhor drenagem em relevo mais dissecado. A área alagada tem Espodossolos e campinarana. Em meio a essa área alagada e deprimida há colinas residuais com solos amarelos e mais argilosos e floresta. Uma topossequência numa dessas colinas até a área alagada foi descrita por Bueno e Nascimento (2002) e Nascimento et al., (2004). Teores de Si, Al e Fe das águas dos lençóis freáticos foram determinados por ICP-MS. 2) O Sítio do Demini encontra-se no médio Demini, na extremidade norte da área coberta pela Formação Içá (CPRM, 2006), e sua área alagada ocupa quase todo o platô. Apresenta campinarana arbustiva, Espodossolos hidromórficos e Gleissolos. Separa-se do Rio Demini por uma estreita faixa de campinarana florestada e Espodossolos bem drenados. Um transecto de 600 m, da margem do Rio Demini até a área alagada, foi descrito por Guimarães (2013).

Resultado e discussão

As áreas alagadas ocupam preferencialmente os interflúvios da rede de drenagem atual, apresentando forte concordância com a distribuição espacial da mesma(Figura 1). Isso indica que a gênese das áreas alagadas está associada com o processo de organização e com o funcionamento da atual rede de drenagem na bacia do Rio Negro, e que os fatores hidrológicos e geomorfológicos são determinantes para a distribuição dessas áreas. Na região estudada, a distribuição das áreas alagadas não pode ser explicada pela presença de membros arenosos intraformacionais ou por depósitos do tipo paleoplaya. A Figura 2A mostra áreas alagadas nos interflúvios sobre rochas paleozoicas, nas bacias dos Rios Jaú e Unini. Da borda das áreas alagadas até seu centro existe um gradiente de cobertura vegetal, que reflete variações pedológicas e hidrológicas: campinarana florestada – campinarana arbórea – campinarana arbustiva (Sítio 1, BUENO e NASCIMENTO, 2002). Essa configuração caracteriza uma relação de concordância por embutimento, representando estágios de desenvolvimento entre dois polos. Colinas residuais com solos amarelos e floresta, do interior da área alagada com Espodossolos, aparecem na Figura 2A como domínios mais claros, com forma arredondada. A topossequência numa dessas colinas (BUENO e NASCIMENTO, 2002; NASCIMENTO et al., 2004) mostrou que a associação Espodossolo/campinarana avança para montante sobre a associação solos amarelos/floresta. Isso se faz pela exportação primeiro do Fe e depois do Al, destruindo os minerais da fração argila. O aumento da porosidade permite a migração da matéria orgânica, complexada ou não com Al e Fe, formando os Espodossolos. As Figuras 2B e 2C ilustram áreas alagadas sobre a Formação Içá. A Figura 2B mostra uma área inundada a oeste de Barcelos. A distribuição das coberturas arbóreas e arbustivas é diferente daquela da região do Rio Jaú. Essa distribuição sugere influência de paleomorfologias de um sistema deposicional de grande abrangência espacial, em áreas hoje isoladas nos interflúvios da rede de drenagem. Essas estruturas foram interpretadas como remanescentes das estruturas flúvio-lacustres das etapas finais da deposição da Formação Içá, conforme sugerido por Campbell et al., (2006) em seus estudos na Amazônia peruana. A Figura 2C mostra as superfícies alagadas do médio Rio Demini, sobre a Formação Içá. Observa-se a concordância entre o limite dessa área alagada (em rosa; Figura 2C) e a distribuição da rede de drenagem. As terras drenadas pela rede fluvial e com cobertura arbórea (em verde; Figura 2C) parecem, de fato, "penetrar" no domínio alagado. Essa geometria sugere que o processo de organização da rede fluvial e sua incisão nos platôs do interflúvio Rio Demini – Rio Aracá promove uma melhoria nas condições de drenagem de seus solos, rebaixando o nível freático e permitindo o desenvolvimento de vegetações de maior porte em detrimento das campinaranas arbustivas e gramíneas das áreas alagadas. Da margem do Rio Demini, sob campinarana florestada e Espodossolos bem drenados, rumo à área alagada com gramíneas e Espodossolos hidromórficos, observou-se a aproximação do nível freático em relação à superfície do solo (Sítio 2, GUIMARÃES, 2013). Uma trincheira em Espodossolo na faixa de transição entre as vegetações de grande e baixo porte ao longo desse transecto mostrou feições relictuais de horizontes espódicos a 15 cm de profundidade, enquanto os atuais horizontes espódicos sustentam o nível freático, abaixo dos 240 cm de profundidade (GUIMARÃES, 2013). Isso indica que o nível freático já esteve mais alto e sugere um avanço do Espodossolo bem drenado com campinarana florestada, da borda do Rio Demini, para o interior da área alagada, com Espodossolo hidromórfico e gramíneas.

Figura 1

Distribuição espacial das unidades geológicas e das áreas alagadas interfluviais.

Figura 2

A: áreas alagadas interfluviais sobre rochas pré-cenozoicas; B e C: áreas alagadas sobre a Formação Içá, a oeste de Barcelos e no Médio Rio Demini.

Conclusões

Propõe-se que as áreas alagadas sobre os interflúvios da bacia do Rio Negro resultam de duas vias genéticas: o caso descrito no Sítio 1 (Jáu) representa a via genética das áreas alagadas desenvolvidas sobre as rochas pré-cenozoicas: são áreas ligeiramente deprimidas em relação ao plano do platô, com material arenoso resultante de acumulação relativa decorrente da podzolização (formação de Espodossolos). Decorrem, portanto, de uma evolução de natureza geoquímica. As áreas alagadas presentes sobre os sedimentos plio-pleistocênicos da Formação Içá (região de Barcelos e região do Rio Demini – Sítio 2) são, por sua vez, zonas hidromórficas que preservam os ambientes e estruturas sedimentares da época da deposição dessa Formação. Elas persistem como ambientes relictuais, nas partes dos platôs ainda pouco afetadas pela incisão da rede de drenagem.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP pelo auxílio no financiamento dessa pesquisa.

Referências

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