Autores

Vervloet, R.J.H.M. (IEMA - ES) ; Campos, F.L.M. (INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO)

Resumo

O trabalho objetiva apresentar as transformações do patrimônio natural geomorfológico da região de Bento Rodrigues, município de Mariana, onde aconteceu o rompimento da Barragem do Fundão, no complexo de exploração polimineral da Samarco/Vale/BHP. Situada na borda leste do Quadrilátero Hídrico de Minas Gerais, esse complexo de exploração responde por uma cadeia de interferências antrópicas de exploração polimineral que tem como consequência a perda significativa de patrimônio natural paisagístico e geomorfológico, tendo como consequência o rompimento da Barragem de Fundão, em novembro de 2015, sobre a bacia do Rio Doce. Através da geomorfologia retrospectiva é apresentada uma cartografia geomorfológica da região, no momento pré e pós-ruptura da barragem com as consequentes transformações na dinâmica fluvial dos rios e os impactos geomorfológicos resultantes desse crime ambiental.

Palavras chaves

Cartografia geomorfológica; Processos fluviais; Patrimônio geomorfológico

Introdução

Na região de Bento Rodrigues, município de Mariana, existem vários complexos de exploração polimineral que respondem por uma profunda cadeia de interferências antrópicas sobre o patrimônio paisagístico-geomorfológico natural com fortes caraterísticas cênicas e com potencialidades turísticas e culturais excepcionais. Entre eles, está o Complexo de Germano da empresa Samarco – holding das empresas Vale e BHP – que explora jazidas de minério de ferro na borda leste do Quadrilátero Hídrico de Minas Gerais. Essas empresas extraem o minério de ferro, através do método de lavra a céu aberto, sendo que a Samarco realiza seu beneficiamento por meio do tratamento a úmido, na mina de Germano (atualmente inativa) e Alegria, na Serra do Caraça, próximo aos distritos de Santa Rita Durão e Bento Rodrigues. Esse beneficiamento é para transporte do ferro, através de mineroduto, para indústria de siderurgia instalada em Anchieta, Espírito Santo, onde é produzido pellets (pequenas pelotas de ferro) para exportação. A perda de patrimônio natural geomorfológico derivado da exploração polimineral intensiva, em uma região onde as alternativas econômicas de geração de renda deveriam utilizar uma agricultura de base ecológica na pequena propriedade agrícola, através do aproveitamento da riqueza hídrica, da valiosa herança histórico-cultural e arquitetônica territorial, colocam em xeque essa atividade de exploração mineral que, além de concentrada economicamente e de características ambientais depredadoras, deteriora sistematicamente toda essa riqueza histórica e paisagística, além da supressão de habitats da fauna, degradação da flora nativa, supressão de florestas, poluição de sistemas hídricos, fragmentação de ecossistemas, descaracterização da morfologia da paisagem, perda de biodiversidade e geodiversidade. Ou seja, pode-se dizer que a contrapartida social e econômica dessas atividades é, portanto, plenamente questionável, tanto em termos econômicos quanto sociais, ambientais e culturais. O evento de rompimento da Barragem do Fundão, no complexo de Germano, em Bento Rodrigues, município de Mariana, fig. (01), visto por muitos como uma “tragédia”, teve como consequência um conjunto quase infindável de impactos ambientais e sociais na região de Bento Rodrigues e ao longo do Rio Doce, com profundas modificações na paisagem (MILANEZ e LOSEKANN, 2016). Esse rompimento da barragem pode ser considerado como um processo anômalo, entretanto, resultante de uma cadeia de processos de interferência físico-paisagística no relevo regional, oriundo da exploração polimineral intensiva ocorrida nos últimos 40 anos nesta região. Segundo os inquéritos policiais em andamento e, com base nas condenações em primeira instância, a grande responsável por esse crime é a empresa Samarco mineração (MPF, 2016). Portanto, neste trabalho, essa empresa será tratada como a grande responsável por esse crime ambiental, considerado o maior da história da mineração mundial. Com base neste contexto, este trabalho objetiva evidenciar as transformações na originalidade e dinâmica da paisagem geomorfológica na região de Bento Rodrigues, próximo ao Complexo de Germano, em função das transformações acumuladas ocasionadas pela prospecção minerária e do rompimento da Barragem do Fundão de propriedade da mineradora Samarco. Para isso, será aplicada uma metodologia que envolve procedimentos e técnicas de cartografia geomorfológica retrospectiva, sensoriamento remoto e trabalhos de campo, demonstrando como as transformações irreversíveis do ambiente físico trazem consequências drásticas para toda a sociedade regional. Ao mesmo tempo, objetiva, também, tecer considerações de ordem técnica sobre processos de mudança na dinâmica da paisagem, impactos sobre a sua morfologia e consequências morfológicas do evento de rompimento da barragem.

Material e métodos

A realização de pesquisas de cartografia geomorfológica retrospectiva em áreas de exploração mineral intensa, como a do Complexo Germano, possibilita o estudo geomórfico do sistema de interferências físico-antrópicos sobre a morfologia dos terrenos que compõem a estrutura superficial das paisagens inseridas nestes complexos (ESTAIANO, 2007), (NIR, 1983), (PASCHOAL, et. al. 2012), (PASCHOAL et. al. 2016) e (SANTOS, 2009). Mais do que permitir o reconhecimento dessas interferências, a cartografia geomorfológica de áreas intensamente transformadas por essa atividade possibilita, também, reconhecer os limites físicos de suporte dos diversos mecanismos de controle geotécnico e ambiental utilizados para justificar a implantação desses empreendimentos. Para termos noção das transformações paisagísticas na morfologia dos terrenos que sustentam a paisagem da região de Bento Rodrigues, principalmente as que resultaram do evento de rompimento da Barragem do Fundão, utilizamos a cartografia geomorfológica retrospectiva, com mapeamento do relevo no período pré-rompimento e pós-rompimento da barragem. Nesta pesquisa, a área de aplicação do estudo compreende a região de Bento Rodrigues, setores de exploração mineral da Vale e Samarco e a bacia do Rio Gualaxo do Norte até as proximidades da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Bicas, sendo este o sistema hídrico mais atingido pelos rejeitos do rompimento da Barragem do Fundão. Os procedimentos realizados para aplicação dessa metodologia de pesquisa foram os seguintes: • Compilação de imagens de satélite Geoeye que ofertam as imagens para o site Google Earth. Duas imagens foram trabalhadas, sendo a primeira no período pré-rompimento, coletada em julho de 2015, e a segunda nos dias posteriores ao evento de ruptura da barragem, datada de 12 de novembro de 2015; • Georreferenciamento dessas imagens em software de Sistema de Informações Geográficas (SIG) para interpretação geomorfológica; • Utilização de fotografias aéreas do sobrevoo realizado pelo IBAMA (2016); • Fotointerpretação e interpretação das feições do relevo regional, em fotografias aéreas e nas imagens de satélite, usando da simbologia aplicada por Vervloet (2014) e os princípios básicos da cartografia geomorfológica conforme Coltrinari (1984); • Trabalho de campo realizado dos dias 21 a 25 de maio de 2016 para correção das feições mapeadas e fotointerpretadas, além da coleta de informações sobre processos geomórficos de superfície, afloramentos rochosos, solos da região e as áreas alteradas pela prospecção minerária e afetada pelos depósitos de rejeitos que extravasaram da barragem. • Deduzir, à luz do conhecimento geomorfológico, as tendências de evolução do relevo após as bruscas alterações da paisagem provocadas pelo rompimento da barragem. Estudando o relevo da região no período pré e pós-rompimento da barragem, ou seja, através da cartografia geomorfológica retrospectiva ao evento de rompimento, além da cadeia de interferências e alterações provocadas pela atividade de mineração intensa, foi possível avaliar as mudanças na originalidade da paisagem da região de Bento Rodrigues e induzir, empiricamente, sobre processos geomórficos que porventura poderão ocorrer em função das alterações originadas do evento de rompimento.

Resultado e discussão

Nos estudos geomorfológicos de paisagens continentais sempre é possível que todos nós tenhamos uma noção exata de sua originalidade, através da associação de fatos e dados geomórficos de cenários distintos e passíveis de mapeamento. A associação é uma correlação de dados e informações que, quando bem cartografados, permitem conhecer esses diferentes cenários geomórficos, a partir de eventos e processos compreendidos em detrimento das modificações ocasionadas tanto por mecanismos naturais ou por ações antrópicas (LEOPOLD e LANGBEIN, 1970).A Região de Bento Rodrigues (fig. 01), além de possuir forte riqueza hídrica e uma paisagem de vales fluviais de notável beleza cênica, é portadora de peculiar conjunto de serras compartimentadas que respondem por uma cenidade bem particular no conjunto de morros e vales da porção leste do Quadrilátero Hídrico. No mapa geomorfológico pré-rompimento (fig. 02) e pós-rompimento (fig.03) é possível ter noção do progressivo avanço da atividade de mineração sobre os morros de topos convexos, morros de topos semi-convexos e os morros convexos, além de descaracterizar a morfologia das escarpas erosivas no entorno da barragem do Fundão. Como é possível observar pelo mapa da fig. (02) o rejeito proveniente do beneficiamento dos itabiritos, para gerar concentração do minério de ferro explorado nas jazidas das minas Germano e Complexo Alegria da Samarco, eram depositados nas barragens do Fundão e Santarém. Isso evidencia a complexidade e o tamanho das extensões territoriais que a atividade de mineração, em larga escala, suprime da originalidade de paisagens e territórios para poder se reproduzir economicamente. Além disso, é surpreendente a geração de impactos e alterações profundas no relevo que ela é capaz de provocar, destruindo e descaracterizando o modelado de um lado e empilhando rejeitos e aterrando vales de outro, transformando profundamente a estrutura superficial dos terrenos. No dia 05 de novembro de 2015, aproximadamente às 15:30 horas, a barragem do Fundão se rompeu, liberando cerca de 34 milhões m³ de rejeitos de minério de ferro, dos quais cerca de 18 milhões m³ foram carreados diretamente na calha do Rio Gualaxo do Norte, e cerca de 16 milhões m³ ficaram depositados, inicialmente, nos vales desse rio e de seus tributários adjacentes (IBAMA, 2015), deixando uma sequência de planícies e leitos fluviais da região soterrados e entulhados de rejeitos, possível de ser bem visualizado pelo mapa pós- rompimento da fig. (03) e fotos da fig. (04). Os sistemas fluviais do Rio Gualaxo do norte e de todos os seus afluentes a jusante da barragem rompida, foram profundamente alterados, tendo seus vales preenchidos por rejeitos, com características físico-químicas distintas do que era depositado por processos geomorfológicos naturais. Diante de tal processo, até mesmo o prognóstico da evolução geomorfológica fluvial da rede hídrica é complexo, haja vista que não se trata de um ambiente que pôde ser observado e estudado suficientemente. Com dito anteriormente o rompimento da barragem do Fundão é um evento que não pode ser compreendido fora do contexto da cadeia de interferências físico antrópicas na morfologia da paisagem de Bento Rodrigues, ocasionado pelos complexos de exploração do minério de ferro, ao longo das últimas décadas (VERVLOET, 2016). Quando houve o rompimento, esse rejeito atingiu a Barragem de Santarém que estava logo à jusante, causando seu galgamento e forçando a passagem de uma carga sedimentar de alta viscosidade que se estendeu, no Rio Gualaxo do Norte, por cerca de 55 km até desaguar no Rio do Carmo. Neste, os rejeitos percorreram outros 22 km até o seu encontro com o Rio Doce, sendo transportados até a sua foz no Oceano Atlântico, chegando ao município de Linhares, Estado do Espírito Santo, em 21 de novembro, totalizando 663,2 km de corpos hídricos, planícies de inundação, alveolares e fluviais diretamente impactadas. A quantidade de rejeitos restantes (cerca de 16 milhões m³) ficou depositada na calha do Rio Gualaxo do Norte e de seus tributários adjacentes até a PCH de Risoleta Neves, em Candonga, onde o material de granulometria mais grossa ficou retido em sua barragem, sendo transportado, a jusante, os sedimentos mais finos, classificados como de carga em suspensão, porque se deslocam junto com a coluna d’água dos rios. O volume de rejeitos depositados ao longo do vale do Rio Gualaxo do Norte e tributários adjacentes provocou a mais rápida modificação morfológica de uma paisagem fluvial, em ambiente tropical, de que se tem notícia na literatura geocientífica, tanto pela rapidez e energia de deslocamento, liberada nesse processo rápido de transporte da massa sedimentar, quanto pela quantidade de matéria depositada em curto espaço de tempo e pela própria extensão espacial da área afetada, como se observa pelo mapa da fig. (03).




Figura 02

Mapa geomorfológico da Região de Bento Rodrigues - Pré- rompimento.







Considerações Finais

A originalidade da paisagem da região de Bento Rodrigues tem sido objeto de intervenções morfológicas em uma escala da ordem de grandeza macro, com a desconfiguração profunda da paisagem ocasionada por complexos de prospecção mineral. As principais empresas atuantes na região são a Vale e Samarco Mineração S.A que extraem o minério de ferro em itabiritos da Formação Cauê do Grupo Itabira, pertencente ao Supergrupo Minas. As modificações são de uma ordem tão acentuada e irreversível que as intervenções, ao longo do tempo, respondem, atualmente, pela ruptura da harmonia paisagística proveniente da compartimentação topográfica da paisagem que possui relevos serranos e de morros dissecados, adquirindo pleno caráter de imutabilidade. A principal consequência desse processo, além das alterações morfológicas regionais, foi o evento de rompimento da barragem de Fundão, descarregando no Rio Doce toneladas de rejeitos de minério que foram parar na sua foz. Deste modo, a cartografia geomorfológica retrospectiva desse "desastre-crime" tem um importantíssimo papel de subsidiar discussões político-ambientais, auxiliando na mensuração dos prejuízos socioambientais e nas projeções de impactos decorrentes de eventos com essas características, assim como numa determinação aproximada de tempo para que o Rio Doce possa restabelecer as condições hidrológicas e/ou sedimentológicas pré-rompimento.

Agradecimentos

Referências

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