• 14° SINAGEO – Simpósio Nacional de Geomorfologia
  • Corumbá / MS
  • 24 a 30 de Agosto de 2023

O papel da geomorfologia na produção científica sobre os desastres ambientais da mineração em Minas Gerais: entre respostas e lacunas

Autores

  • CAMILA TEIXEIRA GOMES VIEIRAUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: camilatex00@gmail.com
  • SARA TOLEDO PEREIRAUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: sara.toledo@estudante.ufjf.br
  • KÉSIA TORRES DA SILVAUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: kesia.torres@estudante.ufjf.b
  • MIGUEL FERNANDES FELIPPEUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: miguel.felippe@ich.ufjf.br

Resumo

Os rompimentos de barragem ocorridos nos anos de 2015 e 2019, de responsabilidade das mineradoras Samarco e VALE S.A, respectivamente, elucidam o potencial modificador do ser humano de alterar significativamente o meio ambiente e a sociedade. Essas tragédias apesar de serem um evidente objeto de estudo no âmbito acadêmico, apresentam lacunas que necessitam ser preenchidas. O atual artigo utilizou uma Revisão Bibliográfica Sistemática que abarca 246 trabalhos acadêmicos selecionados, com o objetivo de evidenciar o que já foi pesquisado no contexto da geomorfologia e que caminhos precisam ser percorridos. Nesse sentido foi possível expor que há muito o que ser feito. Um dos caminhos é investir na pesquisa a fim de mitigar tais lacunas.

Palavras chaves

Antropogeomorfologia; Antropoceno; Metaciência; Relevo tecnogênico; Desastres da mineração

Introdução

A geomorfologia é uma ciência que se ocupa em estudar o relevo e os processos que ocorrem nele, tanto os provenientes da ação humana, quanto os processos naturais, endógenos e exógenos, que constantemente atuam na modelagem do relevo (STRAHLER, 2010). Pensando que o ser humano tem sido cada vez mais capaz de atuar na paisagem de maneira direta e indireta, modificando os processos morfodinâmicos e também remodelando a paisagem (ROZSA, 2007), a Antropogeomorfologia surge como um subcampo da Geomorfologia, no qual busca-se compreender, a partir de uma escala de tempo histórica, como os agentes geomorfológicos tradicionais (como vento e a água) estão conectados com as atividades humanas (HUPY, 2017). Nesse contexto, a mineração aparece como um evidente potencial modificador do homem na paisagem. A mineração de ferro na região do Quadrilátero Ferrífero, no estado de Minas Gerais, por exemplo, acarretou em diversas mudanças nos cursos d'água, que envolveram a bacia do Rio Doce e a bacia do Rio Paraopeba, principalmente após os rompimento das barragens de rejeito. Com a alteração no padrão de drenagem e o assoreamento dos canais, interferindo, inclusive, no abastecimento de água de diversos municípios ao longo das bacias (MENDES, 2019). Apesar da constante ampliação, em magnitude e intensidade das transformações que as ações humanas geram na paisagem, a morfologia, a morfogênese e a morfodinâmica antropogeomorfológica ainda recebem pouca atenção. Isso se deve ao lastro cartesiano que se mantém na dicotomia entre sociedade e natureza da ciência contemporânea, a partir de abordagens teóricas, conceituais e metodológicas antagônicas para os fenômenos humanos e o meio físico-biótico. Com isso, os geomorfólogos, de um modo geral, têm dificuldades em associar o que ocorre no meio “natural” com as ações humanas (HUPY, 2017). No dia 05 de novembro de 2015, a barragem de Fundão, de propriedade da Mineradora Samarco, no município de Mariana/MG, se rompeu. A estrutura armazenava cerca de 50 milhões de m³ de rejeitos de mineração e, desses, 34 milhões (68%) foram carreados no rompimento (PINTO-COELHO, 2015). Com a insuficiência das iniciativas de recuperação ambiental promovidas, esse material foi incorporado à dinâmica hidrossedimentológica e continua sendo levado em direção ao mar, por meio do sistema fluvial (MENDES e FELIPPE, 2019) . A onda de lama percorreu, inicialmente, 2 km até a localidade de Bento Rodrigues, que foi destruída. Na calha principal do rio Doce, esse material foi transportado, atingindo progressivamente uma série de cidades até chegar à localidade costeira de Regência no estado do Espírito Santo. Os rejeitos oriundos da barragem de Fundão causaram o recobrimento de muitas áreas de planícies aluviais e baixos terraços, além do assoreamento de diversos trechos dos cursos hídricos atingidos (MENDES E FELIPPE, 2019). Segundo o Governo de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2016), 4.238 pessoas foram diretamente atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, deixando 19 mortos e amplos danos socioambientais. Pouco mais de três anos após a tragédia em Mariana, no dia 25 de janeiro de 2019, ocorreu o rompimento da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, da VALE S.A, localizada no município de Brumadinho, Minas Gerais. Quando isso aconteceu, a barragem estava com 11,7 milhões de m³ de rejeitos estocados, além dos inúmeros danos ambientais que se assemelhavam ao rompimento de Fundão, a alta mortalidade foi o aspecto mais estarrecedor do novo desastre. Foram registradas 270 mortes (FREITAS E SILVA, 2019). Considerando a relevância desses eventos para a sociedade brasileira e a grande atenção que receberam pela comunidade acadêmica (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021), busca-se discutir a inserção da geomorfologia brasileira dentro das questões que envolvem os dois maiores recentes desastres ambientais.

Material e métodos

Para alcançar essa discussão partiu-se de uma Revisão Bibliográfica Sistemática (RBS) produzida em um trabalho anterior (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021), que consiste em uma metodologia de busca, classificação e seleção de produtos acadêmicos. Nesse caso, a revisão teve como objetivo a compilação das pesquisas referentes às publicações sobre rompimentos de barragem, com foco em Brumadinho e Mariana, entre novembro de 2015 e dezembro de 2020. A RBS possibilitou a percepção da qualidade e relevância das publicações, além das lacunas a serem preenchidas dentro desse campo de pesquisa de desastres tecnológicos (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021). A atual Revisão Bibliográfica Sistemática baseou sua organização na tabela de áreas do conhecimento do CNPQ, em que Geomorfologia está classificada como Geografia Física, no grande campo das Ciências Exatas e da Terra, em conjunto com outras áreas como a Climatologia Geográfica e a Hidrogeografia. Por outro lado, áreas como a Geografia Política e Econômica estão classificadas como Geografia Humana, no grande campo das Ciências Humanas. Neste estudo, foram reunidos 246 trabalhos acadêmicos, obtidos da plataforma Google Scholar, incluindo artigos publicados em revistas e anais de eventos, além de dissertações, teses e capítulos de livros. A partir disso, foram selecionados os que tratam especificamente do tema de Geomorfologia para a realização de fichamentos. Para a efetuá-los, foram determinados os tópicos: objetivo, resultado e importância com o intuito de facilitar a identificação dos textos da temática citada.

Resultado e discussão

Dentre as publicações verificadas, apenas 3% foram classificadas como Geomorfologia. Algumas instituições de ensino, se destacaram na abordagem geomorfológica dos desastres, como é demonstrado no quadro 1. Além disso, observa-se a discrepância na relevância acadêmica entre os trabalhos, informação avaliada através do número de citações. Alguns registraram mais de 100, enquanto outros não apresentaram nenhuma. Isso pode ser explicado por alguns fatores: existe um maior alcance das publicações de língua inglesa na comunidade científica; o efeito cumulativo de citações, no qual artigos com maior número de citações tendem a receber maior atenção da comunidade e maior relevância nos sites de pesquisa, assim fazendo com que esse número suba ainda mais; a notoriedade do autor, que chama atenção e proporciona um maior número de citações, independente da real relevância do tema; e as certificações e indexadores do periódico que foi veículo da publicação. Observou-se que a temática dos estudos girou em torno principalmente da Geomorfologia Ambiental (66%), discutindo o papel dos seres humanos na esculturação do relevo e relacionando os impactos do rompimento na paisagem com questões socioambientais. Além disso, há pesquisas mais técnicas que discutem diretamente por meio de seus objetos de estudo, assuntos como a morfologia dos rios afetados após o desastre ou a granulometria dos sedimentos depositados pela barragem, trazendo temas relacionados à Geomorfologia fluvial, de vertentes e costeira. Para o desenvolvimento desses estudos, notou-se a utilização primordialmente de ferramentas e técnicas de geoprocessamento, que incluiu a fotointerpretação de imagens de satélite para a identificação de feições fluviais, dos depósitos de rejeitos e o dimensionamento da área atingida; o monitoramento da rede de drenagem após os rompimentos para compreender como o rompimento afetou o trajeto desses rios; cálculos de morfometria para melhor compreensão de aspectos morfológicos do relevo, como a confecção do perfil longitudinal dos rios atingidos; e a utilização de softwares como o Google Earth Pro e o ArcGis para realizar interpretações das imagens orbitais. Os trabalhos de campo são uma metodologia comum na Geomorfologia e de extrema importância, mas que ficaram em segundo plano, e envolveram principalmente o reconhecimento da área e a confirmação dos dados obtidos através de fotointerpretação, isso pode ser explicado pela falta financiamento para o trabalho de campo nesses locais. Houve poucos trabalhos que realizaram coleta de dados em campo, pois esses estudos acabam sendo mais específicos de outras áreas da ciência, porém por ser um tema muito interdisciplinar, são utilizados de forma secundária. Os estudos encontrados são variados quanto à extensão espacial de suas discussões. Enquanto alguns se limitam a localidades afetadas especificas, outros trazem contextos que transcendem o território diretamente atingido. Nesse sentido, evoca-se a importância de se compreender a escala geográfica de abordagem das pesquisas. Partindo do princípio de que o espaço geográfico é uma realidade concreta, dialeticamente produto e condição da reprodução da sociedade, a escala deve ser entendida como um filtro, uma lente, que dá visibilidade à extensão espacial de um determinado fenômeno (CASTRO, 1992) de cunho político, que define o nível da abordagem espacial (SILVEIRA, 2004). Analisando os artigos veiculados ao longo destes sete anos que sucedem a primeira tragédia, observou-se que pouco se pesquisou sobre os aspectos geomorfológicos. Um dos trabalhos selecionados, por exemplo, tem como objetivo propor uma reparação das áreas de tecnosolos que, por consequência dos rejeitos do rompimento da barragem, assumiram uma nova morfologia. Para isso, foram propostos dois experimentos, mas que não apresentaram resultados(SCHAEFER et al, 2015). As temáticas ambientais, em sua grande maioria, limitaram-se em mencionar os danos sem se aprofundar sobre as reais consequências na morfodinâmica dos sistemas. Percebe-se ainda um foco das pesquisas voltadas para a apropriação dos desastres para aplicações e testes de metodologias sem considerar propor ou contribuir com a realidade dos atingidos (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021). Sob esse viés algumas considerações foram feitas, notou-se a falta de debate sobre os crimes ocorridos em Brumadinho e Mariana, principalmente no que tange assuntos relacionados às Ciências da Saúde e Ciências Agrárias, além disso, observa-se a presença de uma escrita hermética e técnica na maioria dos textos, o que dificulta a captação de conhecimento pela população atingida. Ademais, nota-se que há um baixo número de publicações classificadas como alta relevância, isso é um sintoma do sistema acadêmico atual ter a produtividade como uma das principais métricas de mérito (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021).

Quadro 1

Instituições de ensino e número de citações dos artigos classificados como de Geomorfologia.

Considerações Finais

A Geomorfologia busca respostas relacionadas aos processos de modelagem do relevo e, pensando nessa temática, o entendimento desses processos após os rompimentos de barragens de rejeitos é de grande relevância acadêmica e socioambiental, possuindo um grande poder em auxiliar a tomada de decisão de órgãos públicos e sanando dúvidas que influenciam diretamente a vida das populações atingidas. Buscando questionar quais caminhos ainda faltam a Geomorfologia explorar, observa-se que pouco abordou-se acerca de toda a dimensão das bacias atingidas. Além disso, pouco foi pesquisado acerca das mudanças na vazão dos rios afetados, o assoreamento dos canais , as mudanças na morfologia do relevo e dos processos morfodinâmicos após o lançamento de tanto material e energia ao sistema geomorfológico. A antropogeomorfologia é uma área em ascensão no meio acadêmico brasileiro, porém seu potencial foi pouco explorado no contexto dos desastres, por conta da lógica cartesiana instalada na Geografia, que produz uma dicotomia entre o homem e a natureza. Por fim, reforça-se a importância de maiores investimentos em pesquisas e extensão no âmbito geomorfológico relacionadas aos desastres a fim de preencher as lacunas existentes observadas pelas poucas publicações realizadas especificamente sobre a temática e ínfimas contribuições desses trabalhos dentro desse debate tanto para a comunidade científica quanto para os atingidos pelo rejeito. (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021).

Agradecimentos

À Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal de Juiz de Fora, pelo apoio financeiro.

Referências

COSTA, Alfredo & Knop, Rebeka & Felippe, Miguel. (2021). A produção acadêmica acerca dos desastres tecnológicos da mineração em Mariana e Brumadinho (Minas Gerais)The academic production on mining technological disasters in Mariana and Brumadinho (Minas Gerais). Confins. 52. 10.4000/confins.41045.

DE CASTRO, I. E. Analise Geografica e o Problema Epistemológico da Escala. Anuário do Instituto de Geociências, v. 15, p. 21-25, 1992.

FELIPPE, M. F. Costa, A., Franco, R., Matos, R. A Tragédia do Rio Doce: A Lama, O Povo e a Água. Relatório de Campo e Interpretações Preliminares Sobre as Consequências do Rompimento da Barragem de Rejeitos de Fundão (Samarco/ Vale/BHP). Geografias, Belo Horizonte, Edição Especial Vale do Rio Doce, p. 63-94, 2016.
FREITAS.C. M.; SILVA, M. a. Work accidents which become disasters: mine tailing dam failures in Brazil. Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, v. 17, n. 1, p. 2019. .
HUPY, Joseph P.. Anthropogeomorphology. International Encyclopedia Of Geography: People, the Earth, Environment and Technology, [S.L.], p. 1-6, 6 mar. 2017. John Wiley & Sons, Ltd.


MENDES, L. C., Felippe, M. F. Alterações geomorfológicas de fundo de vale na bacia do rio do Carmo (MG) decorrentes do rompimento da barragem de Fundão. Caminhos de Geografia, v. 20, n. 69, p. 237–252, 2019.
MINAS GERAIS. Decreto Estadual no 46.953, de 24 de fevereiro de 2016. Dispõe sobre a organização do Conselho Estadual de Política ambiental – Copam –, de que trata a Lei no 21.972, de 21 de janeiro de 2016. 24 fev 2016b. Disponível em: < https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/ completa.html?tipo=DEC&num=46953&ano=2016 >. acesso em: 19 fev 2019
PINTO-COELHO, R. M. Existe governança das águas no Brasil? Estudo de caso: O rompimento da Barragem de Fundão, Mariana (MG). Arquivos do Museu de História Natural e Jardim Botânico, v. 24, n.1,2015.

ROZSA, Peter. Attempts at qualitative and quantitative assessment of human impact on the landscape. Geografia Fisica e Dinamica Quaternaria, [s. l], v. 30, n. 2, p. 233-238, jan. 2007.

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STRAHLER, Alan. Introducing Physical Geography. 5. ed. Boston, Massachusetts: Wiley, 2010. p. 658.

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